Notícias do Programa
Escolas Criativas

Design Libertador: uma abordagem para a igualdade

25 de julho de 2024 Diário de Bordo

Imagine uma escola pública urbana enfrentando desafios persistentes de engajamento dos alunos e desigualdades educacionais. Tradicionalmente, essas questões seriam abordadas com soluções impostas de fora para dentro, por vezes, autoritárias. No entanto, com o Design Libertador, o processo muda radicalmente, pois ele privilegia iniciativas que envolvem escuta ativa, empatia profunda e soluções pensadas e criadas em grupo. Não de forma única e rápida, mas em ciclos que incluem ajustes e feedbacks.

O Design Libertador, ou Liberatory Design (LD), é uma abordagem de design que busca criar soluções equitativas e inclusivas, centradas na justiça social e na eliminação de opressões sistêmicas, e combina princípios de Design Thinking.

O framework/prática de Design Libertador é o resultado de uma colaboração entre profissionais explorando a interseção da criatividade, design e equidade. Eles são Tania Anaissie (Beytna Design), David Clifford e Susie Wise, do K12 Lab/d.School na Universidade Stanford (Califórnia) – esse laboratório serve como catalisador para a confiança criativa na educação básica – e Victor Cary e Tom Malarkey, ambos do National Equity Project.

Não à toa, o Design Libertador também chega para a comunidade do Escolas Criativas. O material com modelos mentais e ações de design voltadas à equidade foi traduzido para o português e pode ser acessado neste link.

Uma escola criativa é também justa, diversa e equitativa. Thais Eastwood, especialista em formação e inovação pedagógica do Escolas Criativas, reforça que a abordagem tem muita aderência às dimensões que formam uma escola criativa (relembre quais são) e, como mais um material de referência e apoio, pode ajudar a aprimorar o trabalho em andamento nas 16 redes públicas de ensino que estão engajadas em trazer mais propósito à educação.

“Por exemplo, quando eu vou desenhar uma aula ou uma experiência de aprendizagem, será que o assunto que estou trazendo é relevante? Não possui, por exemplo, vieses equivocados? Vou proporcionar algum momento de criação ou prototipação nessa aula? Se sim, como ele pode envolver a todos e ser emancipatório? Todas as pessoas estão sendo escutadas? Os modelos mentais do Design Libertador trazem essas rotinas de pensamento e não prescrições de como fazer, traz perguntas e provocações”, explica Thais.

David Clifford, cocriador do Design Libertador, observa que a abordagem tem sido adotada em vários países como Brasil, Canadá, China, Israel (em Jerusalém Oriental e Ocidental, tanto em árabe quanto em hebraico), Nova Zelândia e Senegal, transcendendo fronteiras educacionais para impactar setores como o desenvolvimento comunitário e serviços sociais. Segundo ele, trata-se de uma forma de lidar com desafios complexos de equidade e design.
“É uma prática para gerar autoconsciência e libertar líderes/designers de hábitos que perpetuam danos e desigualdade, mudando as relações entre aqueles que detêm o poder de projetar e aqueles que são impactados por esses designs”, explica. “Dessa forma, cocriamos condições para uma liberação e uma transformação coletivas”.

Um exemplo desse processo pode ser observado em uma escola enfrentando altas taxas de evasão e falta de engajamento dos alunos, na qual os líderes escolares adotam o Design Libertador. Eles iniciam sessões de escuta com os estudantes, descobrindo que muitos se sentiam desmotivados devido à falta de conexão com o currículo e com o ambiente escolar. Com base nesses insights, lançam um projeto de reestruturação curricular codesenvolvido por estudantes e professores, focado em métodos de ensino mais inclusivos e relevantes para suas vidas.

Perceber e refletir

O Design Libertador surgiu da adição de duas ações ao processo de Design Thinking: perceber e refletir. Essas ações ajudam a pausar e interromper hábitos da cultura dominante que contribuem para a desigualdade.

Imagem: Acervo Liberatory Design

A percepção e a reflexão são o coração do Design Libertador e são essenciais para todas as etapas do processo. Entre suas características, estão o foco na equidade, trabalhando para eliminar barreiras e desigualdades; a cocriação, que envolve ativamente as comunidades afetadas no processo de design, garantindo que suas vozes e perspectivas sejam centrais; a reflexão crítica, que incentiva uma reflexão contínua sobre o impacto das soluções propostas, avaliando como estas podem reproduzir ou desafiar estruturas opressivas; e a adaptação, promovendo um processo contínuo de prototipagem e refinamento, adaptando as soluções às necessidades e feedbacks das comunidades.

Outro exemplo prático de Design Libertador é o desenvolvimento de programas educacionais inclusivos que visam melhorar a equidade no acesso à educação de qualidade para estudantes de comunidades marginalizadas.

Susie Wise, cocriadora do LD e Diretora de Estratégia do Alameda County Community Food Bank – uma organização sem fins lucrativos que fornece alimentos para mais de 400 organizações na Califórnia, incluindo cozinhas populares, creches e centros para idosos – explica que o Design Libertador não se limita ao setor educacional, estendendo-se a diferentes contextos como estratégias de justiça alimentar e liderança educacional. “O conceito de LD busca trazer uma lente de equidade e uma lente de complexidade para construir a prática do design na comunidade. Eu estou usando o LD para elaborar uma estratégia de justiça alimentar”, conta.

Segundo ela, muitos designers são movidos a adotar as lentes de equidade e complexidade para fazer um trabalho de design comunitário mais fundamentado e menos extrativo. “Também percebo que profissionais com uma forte orientação de equidade racial são movidos a usar a estrutura do design como uma forma de estruturar suas colaborações em meio à diferença”, afirma.

Experiências práticas

Josh Hough, da Ako Ōtautahi Learning City Christchurch Trust (Nova Zelândia), destaca que o Liberatory Design promove mudanças culturais significativas, criando ambientes de aprendizagem mais inclusivos e empoderadores e promovendo uma cultura de abertura e melhoria contínua. “O Liberatory Design é uma estrutura poderosa para promover a conscientização, a criatividade, o cuidado e as formas de ser e fazer necessárias para alcançar qualquer tipo de mudança real e duradoura com e dentro da comunidade. Ao integrar o LD, professores e administradores podem criar ambientes que nutrem confiança, voz, empatia e colaboração — levando, em última análise, a comunidades escolares mais engajadas e fortalecidas, cujas esferas de impacto positivo se estendem muito além das paredes da sala de aula”, conta.

Hough explica como a metodologia se tornou uma parte do seu dia a dia: “Usei em muitos contextos, no qual o LD foi fundamental para criar um espaço de conexão profunda, reparação, alegria e impacto”, diz. Um exemplo é um projeto de pesquisa de 2021 que destaca as experiências de rangatahi takatāpui (jovens Māori que se identificam com diversos gêneros, sexualidades e características sexuais). “A pesquisa compartilha vozes de rangatahi takatāpui, e o uso de LD na condução da pesquisa ajudou a criar um resultado que provoca e convida educadores a mudar seus relacionamentos com takatāpui de simpáticos para empáticos e transformadores”.

Dra. Tracy Rone é vice-reitora de pesquisa e parcerias comunitárias e professora associada no Departamento de Estudos Avançados, Liderança e Política na Escola de Educação e Estudos Urbanos da Morgan State University, em Baltimore (EUA), uma HBCU (Historically Black University/College, que são faculdades fundadas com base na crença de que todo indivíduo merece acesso a um ensino superior; tradicionalmente, são faculdades voltadas para afro-americanos). Dra. Rone conta que o Liberatory Design está sendo utilizado na reformulação de programas educacionais para líderes escolares, promovendo o envolvimento comunitário e a equidade. Segundo ela, por meio do LD, professores e administradores de escolas públicas podem se beneficiar do desenvolvimento de empatia e da obtenção de insights sobre as perspectivas de crianças e suas famílias, professores, administradores e membros da comunidade.

“Estamos usando o Liberatory Design para redesenhar um dos nossos programas de pós-graduação, um Master of Science (M.S.) em Administração e Supervisão Educacional, que prepara líderes escolares para atuar como diretores de escola, principalmente em distritos escolares públicos com poucos recursos econômicos na região”, conta.

Segundo Dra. Rone, os sistemas escolares geralmente funcionam como “silos”, com escritório central, escolas, famílias e comunidade existindo como entidades separadas, e com crianças e famílias – as mesmas pessoas que as escolas deveriam apoiar – tendo menos visibilidade, voz e acesso ao poder. “No centro de como usamos o LD está a centralização das vozes de nossos alunos e ex-alunos, para entender melhor suas experiências e necessidades que melhor os apoiarão como líderes disruptivos e libertadores, e também familiares e cuidadores em escolas locais, para que as escolas possam criar estratégias para mitigar o legado da desigualdade econômica, habitacional e ambiental”.
Em Long Beach (Califórnia), o Dr. Nader I. Twal é administrador do Programa Vision 2035, o plano estratégico do Long Beach Unified School District, e lá LD está sendo usado, entre outros objetivos, para diminuir a desigualdade racial.

Segundo Dr. Twal, os alunos negros não foram bem atendidos pelos sistemas atualmente em vigor e, independentemente da iniciativa que fosse tomada, os resultados continuavam a ser desiguais. “Isso exigiu que questionássemos um contexto histórico mais profundo, que pode precisar de um redesenho mais intencional, juntamente com aqueles mais impactados por esses resultados.”

Para isso, a equipe do programa se envolveu em “robustas sessões de escuta pela cidade para reunir os sonhos e esperanças de alunos e comunidade negros.” Foram trabalhadas diversas formas com o Design Libertador, enquanto os membros da comunidade eram convidados a sonhar e imaginar quais serviços o Centro poderia oferecer, como ele poderia ser estruturado fisicamente e como poderia ser estruturado organizacionalmente, e até mesmo como deveria “parecer”, para que honrasse a rica história da nossa comunidade negra, de acordo com Dr. Twal.

O Design Libertador não é apenas uma metodologia, mas um movimento em direção a futuros mais equitativos, como observa David Clifford, para quem “o LD foi projetado com muito amor e libertação”, refletindo um compromisso com a criação de espaços de design que respeitem a dignidade humana e promovam a participação ativa de todos os envolvidos.

E ainda tem mais uma vantagem, segundo ele: proporciona um trabalho conjunto em qualquer lugar. “Minha parte favorita do Liberatory Design é poder trabalhar com pessoas ao redor do mundo, como Ana e Thais no Brasil [representantes do Escolas Criativas], ou Tharaa e Dana em Jerusalém, para traduzir/libertar/polinizar o Liberatory Design dentro desses contextos. O que eu amo é praticar Liberatory Design para buscar colaboração e construir confiança relacional para que o LD possa ser verdadeiramente autêntico ao contexto”.

Como o Design Libertador funciona na prática

Escuta Ativa e Empatia Profunda – Os educadores e líderes da escola usam o Design Libertador para se envolver em escuta ativa com estudantes, pais, e membros da comunidade. Em vez de presumir soluções, eles começam entendendo profundamente as experiências, necessidades e aspirações das pessoas afetadas. (Ideias presentes nos seguintes Modelos Mentais do Design Libertador: Exercite a Autoconsciência e Concentre-se nos Valores Humanos)

Cocriação de Soluções – Com base nas percepções coletadas, um processo colaborativo começa. Estudantes, educadores, pais e membros da comunidade são convidados a participar ativamente na definição de desafios e na geração de ideias. Este ambiente de cocriação não apenas valida as experiências das pessoas envolvidas, mas também desencadeia um senso de propriedade e compromisso com as soluções propostas. (Ideias presentes nos seguintes Modelos Mentais do Design Libertador: Trabalhe para Transformar o Poder, Busque Colaborações Libertadoras e Compartilhe ao Invés de Vender)

Adaptação Contínua – O Design Libertador não se contenta com soluções únicas ou rápidas. Em vez disso, promove um ciclo contínuo de experimentação, feedback e ajustes. Isso permite que as soluções evoluam conforme são testadas na prática e refinadas com base no feedback das partes interessadas. (Ideias presentes nas seguintes Ações do Design Libertador: Perceber, Refletir, Investigar e Prototipar. Assim como nos Modelos Mentais: Compartilhe ao Invés de Vender e Atue Com o Intuito de Aprender)

Implementação e Avaliação Sistêmica – As soluções desenvolvidas são implementadas não como experimentos isolados, mas como parte de uma estratégia maior de transformação educacional. Avaliações contínuas garantem que as mudanças não sejam apenas eficazes, mas também sustentáveis a longo prazo. (Ideias presentes nas seguintes Ações do Design Libertador: Ver o sistema, Investigar, Perceber e Refletir. Assim como no Modelo Mental: Reconheça a Opressão )

Impacto e Capacitação – À medida que as soluções começam a mostrar impacto positivo, a comunidade se torna cada vez mais engajada e capacitada. Estudantes se sentem mais conectados à escola, os pais se tornam parceiros ativos na educação de seus filhos, e os educadores desenvolvem novas habilidades de liderança e colaboração. (Ideias presentes nos seguintes Modelos Mentais do Design Libertador: Construa Relações de Confiança, Apoie a Reparação e Exercite a Coragem Criativa)

Quer conhecer mais sobre o framework/prática de Design Libertador e colocá-lo em prática?

Acesse a tradução na nossa biblioteca, é só clicar aqui.

Explore a página do Design Libertador: https://www.liberatorydesign.com/